domingo, janeiro 30

Entre-Tigre-e-Eufrates: Democracia a martelo



Lembro-me perfeitamente da 1ª Guerra do Iraque, aquela que reuniu quase todos os consensos. Para quem não esteve no teatro das operações, pode-se até dizer que lhe senti o cheiro, na Praia da Vitória, da varanda do meu quarto na Residencial Teresinha. Cheirava a gasolina e querosene, no rasto perfumado e enjoativo dos caça-bombardeiro americanos que aterravam na pista do aeroporto das Lajes. Estávamos em Agosto e o Pentágono afadigava-se na operação "Desert Shield", cujo objectivo era deslocar a logística militar das US Forces para o Golfo Pérsico onde, a partir da Arábia Saudita (Rihad), seria lançada a ofensiva destinada a expulsar os invasores iraquianos do Koweit.

Cá pelas ilhas as coisas iam bastante mais calmas. As autarquias tinham acabado de abrir os concursos para a realização dos seus primeiros Planos Directores Municipais e eu estava a caminho do Corvo para fazer a minha quota-parte de trabalho no âmbito do PDM local. Já agora, para que se saiba, a Câmara do Corvo foi a única do arquipélago que teve a "audácia" de entregar à Universidade dos Açores a realização do seu PDM. Honra lhe seja feita.

Nesse tempo, já hoje tão distante, a SATA ainda não voava para o Corvo e a única forma de lá chegar era num Aviocar da Força Aérea. Como estava entregue aos cuidados dos Transportes Aéreos Militares, foi-me dado assistir ao frenesim da ponte aérea do lado não civil da questão. Fiquei, evidentemente, impressionado e como se não bastasse, as condições meteorológicas impediram a aterragem do Aviocar na pista de Vila Nova do Corvo, obrigando-me assim a dois dias de pernoita nas instalações militares da Base Aérea nº 4 das Lajes. Abençoado anticiclone que me valeu uma borla no 1º balcão para assistir àquele filme de guerra. A realidade ultrapassava a ficção e metia o "Top Gun" num chinelo: todos os pilotos de caça que vi de perto eram mais altos que o Tom Cruise e usavam óculos escuros, sim, mas para esconder as olheiras. Em contrapartida, a placa onde estavam estacionados os aviões portugueses tinha, no meio de todo aquele vespeiro aeronáutico, uma dimensão comoventemente Lilliputiana. Enfim, à falta de golpe de asa lá me consolei com a ideia de que, afinal, o porta-aviões sempre era nosso.

Tempos mais tarde, por altura de Fevereiro, assuntos universitários levaram-me a Inglaterra quando a operação "Desert Storm" estava no seu auge e, já com o Koweit desocupado, as forças aliadas entravam pelo Iraque adentro. Uma frente fria siberiana tinha-se abatido sobre as Ilhas Britânicas e eu passava grande parte dos dias refugiado na John Rylands Library, ou então no quarto a ouvir as emissões radiofónicas da BBC, já que os meus amáveis anfitriões não consentiam televisão em sua casa. As notícias do bombardeamento de Bagdade chegavam-me abafadas pela voz calma e "british" do jornalista de serviço. Jamais esquecerei aquilo que um Professor de Arqueologia e Antiguidade Oriental da Universidade de Oxford - convidado pela BBC a comentar a guerra em curso - disse dos bombardeamentos "em tapete" que as forças aliadas então efectuavam: "Esta guerra é um exercício de autofagia; estamos a destruir o próprio berço da nossa civilização". Bem vistas as coisas, a declaração estava longe de ser a descoberta da pólvora, pois qualquer um de nós aprendeu no liceu que foi na Mesopotâmia, entre o Tigre e o Eufrates, que o Homem primeiro se tornou sedentário e agrupou em cidades, que depois deram origem às formas mais complexas e hierarquizadas do Estado, isto para não falar da escrita e, consequentemente, da própria História. Ou será que nos esquecemos? Ou será que ainda não tínhamos percebido bem que o actual Iraque corresponde ao território da antiga Mesopotâmia, a Mãe de todas as mães?

Pelos vistos, não. E a prova é que mais de dez anos passados as cenas se repetiram de novo, desta feita em nome da liberdade e da democracia, predicados políticos ocidentais que a administração Bush entendeu impor à sociedade iraquiana, que já tem idade suficiente para saber o que é que quer. Ontem foram a votos expressar a sua vontade. No momento em que escrevo estas linhas estou longe de saber qual foi o resultado ou, sequer, se houve eleições. Em qualquer dos casos a Ministra dos Negócios Estrangeiros americanos, Condoleeza Rice, não tarda muito está a aterrar em Bagdade e, com todo o respeito, gostava de lhe enviar o forward de uma carta escrita há milhares de anos por Plínio o Moço, que assim se dirigia ao homem que ia tomar posse do cargo de governador da Lacedemónia como representante do poder imperial de Roma:

"Lembra-te que foste enviado para a província de Acaia, para aquela verdadeira e pura Grécia, na qual se crê terem sido primeiro inventadas a cultura, a literatura, e até o trabalho dos campos; enviado para estabelecer ordem na constituição de cidades livres, isto é, para junto de homens que são homens ao máximo (?) Reverencia os deuses fundadores e os nomes das divindades, reverencia a glória de antanho e a própria velhice, que, se é venerável nos homens, nas cidades é sagrada (?) Tem diante dos olhos que foi este o país que nos mandou o direito (?) que é para Atenas que vais, que é a Lacedemónia que governas; e que arrebatar-lhes a sombra que lhes ficou e o nome que lhes resta da liberdade é duro, é feroz, é bárbaro".

A esta sábia e nobre epístola, atrevo-me a acrescentar uma nota pessoal em cartão de visita:

Cara Doutora Rice,
É com imenso respeito pela sua cor de pele que lhe peço o seguinte: faça os impossíveis por ser uma pomba branca.
Acredite que lhe ficava muito agradecido. Eu e muitos outros. A democracia, como dizia Churchill, pode ser o menos mau de todos os sistemas mas, talvez por isso mesmo, não temos o direito de a usarmos como um martelo. O mais certo é os pregos ficarem todos tortos.


N.B.- Este texto foi também publicado (hoje, 2ª feira) na rubrica "Aula Magna" do Açoriano Oriental

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