quarta-feira, abril 27

Um inadmissível branqueamento.

A pesada herança
Correram trinta e um rápidos anos sobre o golpe de Estado que pôs fim ao Estado Novo.
Costuma dizer-se que a ditadura teve como chefes, Salazar e Marcello Caetano, mas não é verdade. Em 28 de Maio de 1926 foram os militares quem derrubou o regime democrático e quem governou ditatorialmente até 1933. Salazar foi apenas Ministro das Finanças, de 1928 até 1933, ano em que o poder lhe foi entregue pelo General Carmona, Presidente da República, que o dividiu com ele até que morreu, em 1951. De 1933 a 1968, Salazar governou o Império com pulso de ferro e, de então até 74, Marcello Caetano presidiu ao Conselho de Ministros sob a tutela do Almirante Américo Tomás, Presidente da República, que o nomeou e de quem infelizmente dependeu até ao derrube de ambos pelos militares de Abril, cansados de guerra e de maus pagamentos. É ainda costume dizer-se que o Estado Novo deixou uma pesada herança e, de facto, Salazar deixou 800 toneladas de ouro no Banco de Portugal, pelo que têm razão neste aspecto, pois não tinha dívidas.
Todavia, a herança mais importante que o salazarismo legou ao País foi, salvo erro, a convicção generalizada de que a ordem pública é indispensável, que o prestígio do Estado não é negociável e que este há de ser forte para não ter de ser violento. Foi isso que impediu, quero crer, durante 31 anos, que houvesse, em democracia, a mínima desordem pública, ou revoluções ou golpes de Estado, ou atentados. Pesada herança, de facto.
Carlos Melo Bento, in Crónicas do Aquém, Açoriano Oriental, Quarta-Feira, 27 de Abril de 2005


Dois dias depois do aniversário dos 31 anos da Revolução de Abril apresenta-nos o Açoriano Oriental este texto do Dr. Carlos Melo Bento que me levou a ficar mal disposto o dia todo e a perder o serão a copiá-lo e a escrever este post.
O inadmissível branqueamento da história que o Dr. Melo Bento pretende fazer nestes três parágrafos a coberto de uma mesquinha ironia não pode passar sem resposta. Com total leviandade o Dr. Melo Bento quer fazer-nos crer (ou quererá enganar-se apenas a si?), entre outras coisas, que as únicas heranças do salazarismo são um Banco de Portugal pesado de 800 toneladas de ouro e, veja-se, um respeito tornado inato no genoma português pela ordem e soberania do Estado. Esta ideia, todo este texto, do Dr. Melo Bento é uma afronta, uma afronta que tomo particularmente. Uma afronta à Revolução de 25 de Abril de 1974 e aos homens que a fizeram, uma afronta à História deste País. Salazar governou Portugal durante 40 anos, com algo mais do que apenas uma mão de ferro, com a supressão dos partidos políticos, com a censura, com uma polícia política atroz, com uma admiração envergonhada pela força disciplinadora de uma Itália fascista e de uma Alemanha nazi, com campos de concentração para os dissidentes e opositores do regime, com trabalho forçado para os desempregados, com o lento e progressivo afundar do País na extrema pobreza, com o assassinato do General Humberto Delgado, com praticamente a plenitude do poder na sua, apenas na sua, mão. A imagem monástica de Salazar não limpa o terror e a infâmia do seu reinado. Em quarenta anos e mais cerca de dez até 74 em que a tristemente celebre "Primavera marcelista" afundou ainda mais um País já de si agonizante, a Ditadura de Salazar transformou Portugal no mais pobre dos países da Europa, em guerra, vendo os seus melhores, ora partindo para a tortura do ultramar, ora fugindo para a emigração forçada, um País destruído economicamente, atrasado culturalmente, um País moribundo. É esta a herança de Salazar, Dr. Melo Bento. Uma pesadíssima herança, da qual ainda hoje, trinta e um anos depois, nos esforçamos por libertar, graças, fundamentalmente, à Revolução de Abril. Eu que nasci em 1974 esforço-me todos os dias para não me esquecer de isto. A Revolução de Abril foi o acordar de um País inteiro, provavelmente tarde de mais, para a esperança de um futuro melhor. Salazar foi um ditador, Portugal sofreu por isso. Abril é a vontade de melhor e de que essa herança nunca se repita.

P.S. Sei que o blogue não é, talvez, o sítio mais próprio para este desabafo pessoal, por isso peço aos meus colegas a sua bonomia, mas não podia deixar de dizer o que disse.

P.S. 2 A discussão sobre o turismo e a promoção do destino Açores continua noutro dia.
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