domingo, março 26

Tarquínio ao Panteão




Antero Tarquínio do Quental nasceu e morreu em Ponta Delgada. Isso toda a gente sabe. Que os pais lhe tenham posto o sobrenome de Tarquínio, é que já é menos conhecido, mesmo entre o pessoal da pesada. Não sei o que é que terá passado pela cabeça do morgado Fernando Quental quando escolheu o nome desse rei Etrusco para o filho, mas ele lá deveria ter uma fisgada qualquer. Ao folhear o Chambers Biographical Dictionary em demanda do Tarquínio original, tropecei noutra inesperada dúvida. É que havia dois Tarquínios: o Lucius Tarquinius Priscus e o Lucius Tarquinius Superbus. Ambos foram reis de Roma, mas o ultimo deixou má fama à pala do filho, Sextus Tarquinius, ter violado Lucretia, uma matrona cujo nome, só por si, tresanda a coisas lúbricas e que inspirou a Shakespeare a peça de teatro, The Rape of Lucrece. Enfim, creio não ser temerário presumir que Fernando Quental se queria reportar ao Tarquínio politicamente correcto, até porque o pai de Antero tinha fama de tipo pacato e habilidoso de mãos, muito dado à nobre arte da marcenaria e da encadernação.

Antero nunca ligou muito aos Açores, pelo menos literariamente. Da sua extensa bibliografia, um dos poucos textos de intervenção cívica açoriana que se lhe conhecem é a Necessidade de uma Doca na Ilha de S. Miguel, publicado anonimamente no jornal Revolução de Setembro quando ainda era um caloiro de 19 anos em Coimbra. Cá no burgo, foi depois transcrito nas páginas do Correio Micaelense, nº 776 de 16 de Abril de 1861, para quem possa estar interessado. Como anota Ernesto do Canto em pé de página no Arquivo dos Açores, foi das poucas ocasiões em que advogou os interesses da sua pátria. Pode parecer estranho, mas a pátria insular dava-se então ao luxo de prescindir dos seus serviços e emprestá-lo à nação. Como se veio a provar mais tarde, com as Conferências do Casino e a Geração de 70, o país estava deserto, deserto, desertinho para o aproveitar. Depois do coccus hesperidum, uma praga danada que devastou os laranjais de São Miguel, esta terra dedicou-se à exportação de intelectuais. Teófilo Braga foi outro e ? aqui entre nós que ninguém nos ouve ? ainda bem, porque o tipo era um chato, para não dizer outra coisa. E se a este nome juntarmos os de José e Manuel de Arriaga, ambos saídos da velha família faialense dos Brum da Silveira, temos completa a tríade do republicanismo português que, para o melhor e para o pior, marcou grande parte da nossa contemporaneidade e imaginário nacional. Sabe-vos a pouco? É que ainda sobra António José de Ávila, o tristemente célebre Duque de Ávila e Bolama, várias vezes ministro e Presidente do Conselho de Ministros, mas que entrou na memória colectiva por ter ordenado o encerramento das Conferências do Casino em 1871, ou então Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, também ele várias vezes Presidente do Conselho, o hierático casaca de ferro que esteve ao leme da nação nas vagas tormentosas do naufrágio da monarquia constitucional.

É muita fruta, convenhamos. Se bem me lembro, o Miguel Esteves Cardoso deu por isso e publicou no Independente uma elegia aos Açores em que afirmava serem as ilhas a região do país com o maior PIB per capita. Por PIB, referia-se a Produto Intelectual Bruto. O Dr. Mota Amaral não podia ter ficado mais encantado. Mandou emoldurar o texto e pendurou-o na parede do Palácio da Conceição. Não sei se ainda lá está, nem me interessa. Assim, pendurado, não lhe vejo qualquer préstimo. Talvez o novo inquilino do Palácio que, aliás, já conhece bem os cantos à casa, esteja disposto a assumir uma atitude mais pró activa a respeito destas coisas da cultura que, como Francisco Lucas Pires teve um dia a honestidade de dizer, são os brincos do poder. Recentemente, Carlos César tomou a iniciativa de trasladar as ossadas de Manuel de Arriaga para o Panteão Nacional. Se me perguntarem a opinião, eu respondo que os restos mortais de José de Arriaga também o deviam ter acompanhado. Sem ofensa ao mano Manuel, mas ter sido o 1º Presidente da República parece-me um critério demasiado institucionalista. Dito isto, aplaudo a iniciativa, mas não descanso enquanto não vir Antero no Panteão. Alguém me explica a diferença, para melhor, entre Teófilo e Antero?

É que o Teófilo também já lá mora, desde 1924. Aliás, nem sequer descansa em S. Vicente de Fora, mas sim no Mosteiro dos Jerónimos, a Abadia de Westminster portuguesa, onde estão sepultados os grandes heróis cívicos da literatura portuguesa (Luís de Camões, Alexandre Herculano, Almeida Garrett e, mais recentemente, Fernando Pessoa), excepção feita a Sidónio Pais e ao próprio Teófilo Braga, claro, mas, como todos sabemos, a 1ª República foi muito dada a disparates. Ora, se há alguém que tem uma espécie de direito natural a estar nesse Panteão oficioso da nacionalidade, esse alguém é André Tarquínio do Quental, que ainda hoje repousa no cemitério de São Joaquim em Ponta Delgada. Por sinal, logo na primeira campa à esquerda de quem entra. Muito conveniente, dirão alguns. Será por isso que ele ainda lá está? Ou porque deu dois tiros pela boca acima, junto ao Convento da Esperança? Agostinho da Silva costumava dizer, naquelas piruetas filológicas em que era pródigo, Antero não se suicidou, foi suicidado.

Nós, que o suicidámos, não deveríamos ter o dever moral de o panteonizar?

Nós outros, açorianos, que emprestámos à nação tanto republicano, não deveríamos ter a obrigação moral ? e o direito cívico ? de sermos Capital Nacional da Cultura em 2010?

Este fim-de-semana, nas Furnas, discutiu-se muito a policromia dos blogues. Foi um Encontro de Druidas bastante agradável. Cá por mim, saí de lá convencido que o blogue é, ou deveria ser, uma arma.

TARQUÍNIO AO PANTEÃO, JÁ!

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