segunda-feira, julho 24

...Elas andam por aí

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foto: António João Correia no Resistir
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Depois da crónica canina da passada semana ocorreu-me dissertar sobre vacas?das autênticas Frísias Holstein que, ao estilo de uma aguarela kitsch, vão decorando as nossas paisagens. Num breve parágrafo o leitor já concluiu, e bem, que o cronista mergulhou de corpo inteiro na onda da silly season. Contudo, as nossas omnipresentes vacas merecem um limiar mínimo de respeito, não espantando pois que sejam honradas numa crónica semanal num jornal de grande circulação local. Ora, sem querer ter a ousadia de traçar a simbologia da vaca na nossa comunidade o certo é que elas estão em todo o lado. Desde o uso gráfico e onomatopaico do animal para fins comerciais e culturais, até ao abuso do mesmo em sanguinolentas matanças em honra do Divino que, apesar da lei tipificar tal conduta como criminosa, asseveram-me ainda ocorrerem em algumas freguesias da nossa Ilha.
Porém, além da simbologia, tema assaz inane, o problema da vida real é que, literalmente, as vacas andam por aí!

E o perigo é que no ciclo, do prado ao prato, há episódios regulares em que os ditos animais passeiam-se recorrentemente pela via pública, sem correntes ou condutor, cuidando de deixar a devida marca que nenhum préstimo tem como eventual sinalização horizontal.
Peremptoriamente o nosso Código da Estrada define taxativamente via pública como "via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público" e ao que parece, por via de costume local e regional, as ditas vias são ainda corredores para o traslado de gado. Imagino os estupefactos turistas nórdicos que nos visitam perante tão pitoresco e terceiro-mundista desfile etnográfico. Calculo até que munidos da inevitável câmara digital cuidem de levar mundo fora tais imagens indígenas, a par de outras de igual jaez, que em nada nos dignificam. Porém, o turista está de passagem e o cidadão que diariamente circula nas nossas estradas está exposto a um perigo real que parece passar ao largo das autoridades.

Com efeito, de um modo geral, o mesmo Código da Estrada, no seu art.º 11º, impõe que "todo o veículo ou animal que circule na via pública deve ter um condutor". Logo, por regra, as nossas estimadas vaquinhas quando mudam de pasto, ou de ordenha, deveriam seguir bem ordenadas por um condutor que, medianamente responsável, acautelasse os perigos para a circulação rodoviária. Na realidade, por regra, ou as bestas seguem sozinhas ou são mal conduzidas por um petiz que julgo também seria um bom modelo para os clichés dos nossos turistas e uma triste ilustração do trabalho infantil e do absentismo escolar.
Mas entre as estruturas programáticas da nossa sociedade e aquilo que a realidade exibe parece permanecer um fosso inultrapassável. No caso da deambulação desregrada de gado nas nossas estradas é manifesto que a realidade não tem qualquer conexão com as regras estradais a que os donos das bestas estão obrigados. Com efeito no domínio do Código da Estrada, mais concretamente no seu art. 97º, "os condutores de veículos de tracção animal ou de animais devem conduzi-los de modo a manter sempre o domínio sobre a sua marcha e a evitar impedimento ou perigo para o trânsito". Atenta a realidade quotidiana das nossas estradas este preceito soa a sarcástica chalaça sobre o comum dos condutores. Mais, dispõe o mesmo artigo, no seu n.º 2, que "a entrada de gado na via pública deve ser devidamente assinalada pelo respectivo condutor e fazer-se por caminhos ou serventias a esse fim destinados.". Como se sabe esta norma é letra morta nas nossas estradas. Acresce ainda o zelo do legislador, quiçá tendo presente a bruma que frequentemente nos assola, que "sempre que seja obrigatória a utilização de dispositivos de sinalização luminosa, os condutores de veículos de tracção animal ou de animais em grupo devem utilizar uma lanterna de luz branca, visível em ambos os sentidos de trânsito.". Só faltava mesmo era obrigar os condutores de gado a circularem com coletes retrorreflectores ! Inevitavelmente como não há norma sem sanção o legislador prevê a aplicação de coimas para os proprietários dos animais que circulem em contravenção ao Código da Estrada. Como é óbvio desconheço a estatística da aplicabilidade destas normas, mas nunca vi tais infractores serem autuados ou sequer caírem nas malhas de uma operação stop.
Como infelizmente a realidade mostra, também nestes domínios da impunidade, há "vacas sagradas" que, por opção ou negligência, permanecem intocáveis apesar de contribuírem para a malfadada sinistralidade rodoviária e do mesmo passo servirem de figurantes pitorescas num postal turístico que em nada nos dignifica.
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JNAS na Edição de 25 de Julho do Jornal dos Açores

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