sexta-feira, setembro 29

Desabafo

Dizia Camões que todo o mundo é composto de mudança, ao que Tomaso de Lampedusa respondeu que é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma. Nos últimos dias tenho comentado com alguns amigos que nos Açores depois de um sopro de mudança tudo voltou à mesma. Quem não se interessar pela novela do "Língua Afiada" pode ficar já por aqui e abster-se de ler o resto deste post, a quem interessar o assunto e as suas guerras de bastidores então bem-vindo a este meu desabafo. Como já é do conhecimento geral o "Língua Afiada" acabou, da mesma maneira que no ano anterior tinha acabado o "Choque de Gerações" programa que, esse sim, nunca devia ter acabado. Por um lado o fim do "Língua Afiada" é algo perfeitamente natural, até mesmo justificado, inclusive por mim que desde o início questionei a pertinência daquele modelo no contexto da RTP-A, questionei até a minha capacidade individual de participar num programa com aquele figurino. Mas, por outro lado, há uma série de questões que se levantam com o fim de um programa que durante quase um ano questionou, criticou, por vezes elogiou, e pensou a sociedade e a política açoriana, de uma forma livre e descomprometida e, mais importante, não partidária, como o fez o "Língua Afiada". Durante mais de trinta programas quase todas as grandes questões que afectam os Açores foram por nós tratadas e muitos dos sound bytes ali lançados criaram eco na sociedade açoriana, tanto no espectador comum e anónimo, como nos poderes instituídos e nos responsáveis políticos, que por vezes também gostam de ser anónimos. Quem fez o "Língua Afiada" sabe dos comentários, dos recadinhos, das mensagens e dos telefonemas, das conversas de corredor e dos incómodos que o programa provocava. Essa foi uma das principais razões para que o programa acabasse. Isso e a incompetência, a falta de profissionalismo e a deslealdade pessoal dos directores da RTP-A para com duas pessoas: eu e o Nuno Barata. Já aqui falei de como isto tudo se processou, mas há neste momento um dado importante que importa tornar público. Quando o "Língua Afiada" começou os directores da RTP-A assumiram connosco o compromisso da sua continuidade, que foi uma condição por todos nós assumida como legitima dada a natureza de má-língua que se pretendia dar ao programa. Ontem o director de informação da RTP-A, num telefonema incómodo, terminou a minha colaboração com a estação, dois dias antes o director da estação tinha-me assegurado que eu já era da casa. Durante todo este tempo em que emiti opinião na RTP-A fiz, pela minha parte, um enorme esforço de profissionalismo para cumprir com aquilo que me tinha sido pedido, tenho a certeza que o Nuno fez o mesmo. Hoje somos penalizados por ter feito bem aquilo que a RTP-A nos pediu. O Dr. Costa Neves vêm cavalgando há meses a onda da falta de oxigénio na sociedade açoriana, tive a oportunidade em directo de lhe dizer que na minha opinião essa falta de oxigénio não é culpa do Governo x ou y, mas antes de um atavismo intrínseco à própria mentalidade açoriana. Este caso do "Língua Afiada" é paradigmático disso. Eu até acredito que não tenham havido pressões directas da parte do secretário disto ou da presidente da câmara daquilo, ou até mesmo do gabinete de Sexa o Presidente, mas os directores da estação que, como diz um amigo meu emprenham de orelha, de tanto ouvirem criticas e desabafos contrafeitos sobre um programa em que sem papas na língua poucos diziam em voz alta o que muitos pensam baixinho sobre a actuação de quem governa os destinos desta região, incutidos dessa impressão desconfortável e sabendo que estamos a dois anos de importantes eleições, dois anos em que muitos escândalos vão rebentar e em que muitas obras vão derrapar, com base neste feeling os directores da RTP-A, decidiram tirar do ar e cortar o pio, numa atitude que não tem outra classificação que não seja um real pontapé no real rabo, decidiram tirar do ar dois indivíduos que não tem medo de falar sobre tudo e sobre todos com a mesma frontalidade com que se anda na rua de cabeça erguida. Quer o Nuno Barata, quer eu, cada um à sua maneira, somos incómodos para os poderes instituídos, para o marasmo de quem gosta que tudo fique na mesma. É por isso que vamos deixar de aparecer todas as semanas na televisão. Isto não tem nada de ilegítimo, não. Os senhores são directores e fazem o que quiserem, grave é que em pleno século XXI ainda haja um canal de televisão, de serviço público, e em regime de monopólio, onde as decisões sobre a programação são tomadas não com base em audiometrias, ou estudos de mercado, ou no real interesse dos espectadores, mas apenas com base na opinião dos seus directores e das bocas que estes ouvem nos esguios corredores dos aviões da SATA.

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