sexta-feira, janeiro 19

Geração de 70



La France

Primeiro o cinema, depois a televisão e, finalmente, a Internet, tornaram o mundo cada vez mais anglicizado. Contudo, mesmo um empedernido anglófilo como eu, deve reconhecer o privilégio de ter aprendido, tant bien que mal, francês no Liceu graças aos esforços do Dr. Pequito, cuja competência me fez passar muito ao largo da Alliance Française anos mais tarde. A França, aliás, transbordava das salas de aula para a rua, na Lisboa dos anos 70. As raparigas liam o Salut les Copains, revista de referência para as aspirantes a Sylvie Vartan, à venda em todas as bancas de jornais. Os rapazes colecionavam posters da BB, ou deixavam-se arrepiar pela beleza esfingíca da Catherine Deneuve. Na programação das salas de cinema, o francês traduzia a sua presença, desde logo, na terminologia, as matinés e as reprises, e havia fitas para todos os gostos, desde o impagável Louis de Funés até ao Jean-Paul Belmondo, cujo desempenho em Pierrot le Fou jamais esquecerei. Das pequenas multidões que se juntavam no sopé da Calçada da Glória em dia de ciclo Truffaut, quando a Cinemateca asilava no Palácio Foz, soltava-se uma devoção laica de fazer inveja aos católicos mais praticantes. Até mesmo uma criatura tão deliciosamente britânica como a Jane Birkin, entrou nas bocas do mundo com a interpretação do Je t'aime, moi non plus, música que fez mais pelo francês do que o método Assimil, então também vendido em discos LP. Carmen, a empregada do andar de cima, com a sua honrada 4ª classe feita em Cernancelhe, trauteava a canção de fio a pavio no mais perfeito karaoke e muitas vezes, ao ouvir a sua voz harmoniosamente entrelaçada com os gorgorejos da Jane Birkin, dei por mim a pensar que isto do amor, em francês, é que é. O amor e, bien entendu, o intelecto, pois o idioma de Voltaire era uma espécie de língua mãe para a inteligensia portuguesa daquele tempo, quando a agenda política e cultural das Universidades seguia as nouveautés editoriais da rive gauche parisiense. Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, Edgar Morin, eram portagens obrigatórias no nosso caminho para o conhecimento.

Ora, 30 anos passados, o francês tornou-se praticamente uma lingua morta. Longe vão os tempos em que assisti a um concerto do Leo Ferré no Coliseu dos Recreios, com a sala apinhada de gente a cantar em uníssono os poemas do velho anarquista monegasco. O Ferré não tinha o talento literário e musical do Jacques Brel, mas possuia uma intensidade dramática absolutamente incomparável. Ficou-me gravada a melancolia com que tocou ao piano o Avec le temps, mas só hoje, ao escrever estas linhas sobre o crepúsculo francês, compreendi o verdadeiro alcance das suas lágrimas em palco.



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