quarta-feira, janeiro 31

A Interrupção Voluntária da Gravidez

Vamos ser chamados a votar a despenalização, ou não, da Interrupção Voluntária da Gravidez, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Aquilo que o Estado pede aos cidadãos eleitores é que expressem a sua concordância ou a sua renúncia a esta questão. Importa, por isso, perceber o estrito âmbito da pergunta que este referendo coloca aos portugueses. A IVG é um procedimento médico que permite a uma mulher pôr termo a uma gravidez. De acordo com o actual código penal este procedimento é legal em determinadas circunstâncias como em caso de risco de vida da mãe ou do feto, em caso de mal formação extrema e em casos de violação. No entanto, outros casos são considerados crime, puníveis com prisão. É sobre esses casos que os portugueses são chamados a votar. Deve uma jovem adolescente de 16 anos, que está a descobrir a sua sexualidade, que procura chegar à vida adulta, que ainda não pode votar, ser punida por, quando confrontada com uma gravidez indesejada, decidir abortar? Deve uma mãe solteira com um filho e com fracos recursos económicos, que por uma casualidade se encontra grávida novamente e que decide abortar, ser punida? Deve um casal, com uma saudável vida em comum há vários anos, com dois filhos, que decide que não deseja ter mais filhos e que faça um aborto, ser punido pelo Estado? Deve um casal de namorados estudantes universitários, que ainda vivem em casa dos pais, que não tem estabilidade emocional e financeira, que usa regularmente métodos contraceptivos, mas que a rapariga engravida e decide por si própria abortar. Deve ela ser punida, ou ele, por não ter impedido, ou vice-versa. Ela quer ter a criança e ele não. Quem é que deve ser punido pelo Estado? Mais, devem todos estes casos, que são apenas exemplos paradigmáticos no meio de toda uma outra miríade de tantos motivos que podem levar seres humanos à dramática situação de abortar, devem estas pessoas ser ainda mais penalizadas por um Estado autoritário que as obriga a recorrer ao desmancho, à mesinha, à clínica de vão-de-escada, aos métodos inseguros e dúbios, inumanos, selvagens e primários a que hoje milhares de mulheres recorrem para pôr fim às suas gravidezes? Ou, mais ainda, deve o Estado permitir essa estrema desigualdade social que tolera que apenas os detentores de poder económico possam recorrer a clínicas privadas, aqui ou no estrangeiro, e assim em condições médicas seguras terminar uma gravidez?

É sobre isto que o Estado nos pede para votar, sobre estes casos e outros como estes, sobre estas pessoas, estas vidas. Devemos punir estas pessoas, ou não? Devemos punir quem, pelas suas razões, faz um aborto, ou não? Temos o direito de "comandar" estas vidas, ou devemos permitir que cada um escolha de acordo com a sua consciência?

Perante esta questão a sociedade portuguesa surge dividida. Confirmou-se isso diante das últimas sondagens. De ambos os lados, pelo Sim e pelo Não, esgrimem-se razões e agitam-se argumentos. Uns mais sensatos, outros mais demagógicos, uns mais fidedignos, outros mais falaciosos, uns mais racionais, outros mais emotivos, de ambos os lados. Não me interessa discutir, nem sequer rebater, todos os argumentos que têm surgido na praça pública, até porque questões mesquinhas como dinheiros públicos em situações de saúde, ou comparações medonhas com factos históricos, não me parecem ser a forma sensata de debater este assunto. No entanto há determinadas questões que merecem ser reflectidas e discutidas com ponderação, principalmente aquelas que estão no âmbito da pergunta que nos é colocada pelo referendo, que é, relembro, "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"

O primeiro ponto é o da despenalização sobre o qual importa apenas acrescentar, ao que já expus acima, que apenas se pretende introduzir na moldura penal mais uma excepção, às já existentes, permitindo assim que até às dez semanas e em estabelecimento de saúde autorizado o aborto por opção da mulher não seja punido. Neste ponto muitos querem fazer crer que se trata de liberalizar. Recorro ao meu Dicionário Houaiss que esclarece que liberalizar é: dar com liberdade, distribuir com profusão, prodigalizar. Ainda a este respeito, convém também clarificar que o Liberalismo é uma doutrina politica e filosófica que remonta ao pensamento do inglês John Locke (1632 - 1704) e que se baseia na defesa intransigente das liberdades individuais em matérias económicas, politicas, religiosas e intelectuais, em oposição igualmente intransigente contra quaisquer ingerências excessivas ou atitudes coercivas do poder estatal na vida dos indivíduos. Parece-me assim claro que em face da pergunta que nos é posta pelo referendo não existe qualquer tipo de liberalização do aborto, antes pelo contrário, pressupõem-se sim limitações concretas e mais uma excepção ao regime já existente. (O que pensaria Locke do nosso referendo...)

A segunda questão que se tem levantado é a de por opção da mulher. Creio que qualquer pessoa de boa fé compreenderá que este é um problema transversal à sociedade e que afecta todos, homens e mulheres, desde que sexualmente activos. A questão que aqui se coloca é que como não se pretende obrigar ninguém a abortar o consentimento daquelas em quem o procedimento médico é perpetrado é um factor essencial para a sua legitimidade, daí ser fulcral que o aborto seja feito por opção da mulher, isto é, com o seu acordo.

Em terceiro lugar, as dez semanas. Para tudo nas nossas vidas existem prazos, datas limites, fronteiras temporais. Uma idade para votar e para conduzir, um tempo na vida para começar a pagar impostos, uma idade para entrar na escola, um tempo para começar a trabalhar, uma idade para a reforma, um tempo para morrer. O limite temporal que aqui se pretende estabelecer é não só baseado nesta necessidade civilizacional de estabelecer regras e parâmetros mas, também, na avaliação concreta do problema do aborto. O limite das dez semanas que se pretende estabelecer é um dos mais conservadores de todas as legislações europeias. Na Turquia a despenalização é permitida até às 10 semanas. Itália, França, Alemanha, Dinamarca, Áustria, Grécia, admitem a IVG até às 12 semanas. Suécia, Holanda, Finlândia, Reino Unido, até as 20 semanas e mais. O prazo das dez semanas é medicamente aceite como o período de transição entre a fase embrionária e a fase fetal, período esse que levanta menos riscos para a mãe e permite uma adequada ponderação da decisão por parte das pessoas envolvidas, médicos, pacientes e familiares.

O quarto ponto prende-se com a obrigatoriedade do procedimento ser feito em estabelecimento de saúde autorizado. Este é, ao contrário do que se possa pensar, um ponto fundamental nesta questão. Com isto refuta-se não só a acusação de liberalização, uma vez que haverá um controlo por parte do estado sobre as instituições que poderão efectuar tais procedimentos médicos, como ao mesmo tempo se incute na sociedade a ideia de que o Estado não faz uma avaliação moral sobre a questão do aborto e leva as pessoas a procurarem de forma aberta um acompanhamento médico de modo a poderem ponderar, decidir e efectuar com toda a segurança e com total responsabilidade um acto médico que, pela sua natureza, assim o exige.

Por último dois pontos fundamentais que têm sido suscitados, cada um por cada uma das partes: o problema de saúde pública e a questão da "vida". O aborto clandestino é hoje, em Portugal, um gravíssimo problema de saúde pública. A realização de interrupções da gravidez sem acompanhamento médico adequado coloca as mulheres que se sujeitam a estas intervenções em perigo extremo, com consequências físicas e psicológicas gravíssimas, como lesões cervicais, a perfuração do útero ou intestinal, infecções várias, infertilidade e acabando muitas vezes em lesões permanentes, depressões graves e mesmo a morte. A forma mais imediata de combatermos este flagelo é a legalização da IVG, até às dez semanas, por opção da mulher e com acompanhamento médico.

Quanto à questão da "vida", tal como esta é posta pelos defensores do Não no referendo, é ao mesmo tempo e paradoxalmente o mais legítimo e o mais despropositado dos argumentos. Recorro mais uma vez ao meu Houaiss que diz o seguinte: vida s.f. 1 modo de viver; conjunto de hábitos 2 propriedade que caracteriza os organismos cuja existência evolui do nascimento até à morte 2.1 um sistema com capacidade para se submeter ao processo de evolução por selecção natural (que envolve replicação, mutação, e replicação de mutações) 2.2 conjunto de actividades e funções orgânicas que constituem a qualidade que distingue o corpo vivo do morto 3 o período de um ser vivo compreendido entre o nascimento e a morte; existência (...). Continuando à procura de uma definição e, já que sou anglófono, abro o meu Penguin English Dictionary que diz isto: life noun 1a the quality that distinguishes a living and functional being from a dead body or inanimate object. b a state of matter, e.g. a cell or an organism, characterized by capacity for metabolism, growth, reaction to stimuli, and reproduction. Editorial note: the characteristics of living organisms include the capacity to maintain a constant internal environment, to respond to and transform their external environment, to grow and develop, and to self-replicate, producing more or less identical copies of themselves. Living beings are thermodynamically open, deriving energy from their environments in order to sustain and transform themselves, a process known as autopoiesis, or self-creation. Já a Enciclopédia Britânica sintetiza a vida com esta descrição: State characterized by the ability to metabolize nutrients (process materials for energy and tissue building), grow, reproduce, and respond and adapt to environmental stimuli. Bom, e a tentativa de definir o que é a vida prossegue, e existe desde que se criou a linguagem, sendo que se trata de uma das questões mais complexas e vastas do pensamento, atravessando ciências e confundindo pensadores, filósofos, escritores e cientistas.

No que concerne à gravidez, de uma forma muito genérica, e do ponto de vista científico, o desenvolvimento pré natal, está dividido em três grandes períodos, cada um deles caracterizado por diferentes padrões de desenvolvimento e de interacção entre o organismo e o seu ambiente: Primeiro o Período Germinal que tem início quando as células germinais do pai e da mãe se juntam na concepção e que se prolonga até o organismo em desenvolvimento se agarrar à parede do útero, cerca de 8 a 10 dias após a concepção. Depois o Período Embrionário que se estende desde que o organismo se agarra à parede do útero até aproximadamente ao fim da oitava semana, quando os principais órgãos assumem forma primitiva. Por fim o Período Fetal que prossegue até ao nascimento. Todo este processo é extraordinariamente frágil e a qualquer momento pode terminar por uma variedade de razões. Inclusive, um estudo de AJ Wilcox, efectuado em 1999, determinou que 25% de todas as gravidezes terminam ainda no período germinal sendo que nestes casos a interrupção acontece mesmo antes da mulher se aperceber que está grávida. O início do período fetal, entre a oitava e a décima semanas, acontece quando os tecidos básicos e os órgãos surgem em forma rudimentar e os tecidos que formam o esqueleto começam a endurecer. Um aspecto determinante tem a ver com as capacidades sensoriais do feto. Os primeiros estágios de desenvolvimento do ouvido interno, que controla o equilíbrio, acontecem cinco meses após a concepção, aproximadamente na mesma altura o feto responde também a estímulos auditivos, só às 26 semanas o feto responde a estímulos visuais, os hemisférios cerebrais surgem apenas a meio do processo da gravidez.

Estes dados permitem que cada um de nós crie uma concepção sobre o que é para si a vida e quando é que ela surge. Uma concepção que pode ser mais poética, ou mais cientifica, mais filosófica ou mais religiosa, mas uma concepção sempre individual e de acordo com a consciência de cada um. Ora a função do Estado, o papel da sociedade no seu todo, é legislar de acordo com princípios gerais, delimitados por regras genéricas, fora do âmbito da moralidade estrita de determinado credo ou concepção. Compete ao Estado legislar para o indivíduo, mas nunca individualmente. Compete ao Estado legislar para todos os cidadãos, mas nunca para cada cidadão. Mas o que está aqui em causa e no que à questão da vida diz respeito, é que se decidirmos que o embrião é já uma vida de pleno direito, o que eu não concordo, não compete ao Estado escolher sobre que vida tem mais valor se a da mãe se a do embrião. Compete sim ao Estado, na minha opinião, permitir que seja cada um de nós, em consciência, com o beneplácito da sociedade, a fazer essa escolha.

O que este referendo nos pede é que digamos sim ou não à liberdade de cada cidadão fazer essa escolha. É por isso que eu vou votar Sim no dia 11 de Fevereiro.

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