sábado, fevereiro 3

NÃO ao "aborto a pedido".

Em defesa do NÃO ao "aborto a pedido" (*)

Por imperativo de consciência entendi que, na questão da despenalização do aborto, não deveria reduzir os meus deveres de cidadania ao exercício do direito de voto. Além deste direito, julguei ser oportuno e conveniente exercer a minha liberdade de expressão e, em conformidade, participar publicamente, alinhando alguns argumentos em favor do voto no "Não". Pela sua própria natureza o debate sobre o aborto é polémico e presta-se a posições extremadas, muitas vezes motivadas por uma informação incompleta ou deturpada. Assim, importa esclarecer os precisos termos da legislação vigente em matéria de penalização do aborto, até porque, na minha opinião, a questão é essencialmente ético-jurídica e não fundamentalmente político-partidária, religiosa ou ideológica.

I O actual enquadramento jurídico penal do crime de aborto.

Desde logo, nesta matéria, importa reter que o actual Código Penal tutela o direito à vida, naturalmente indissociável do correspondente direito de nascer. Esta tutela penal encontra-se prevista nos artigos 140º, 141º e 142º do Código Penal, integrados no Cap. II intitulado "Dos Crimes contra a vida intra-uterina", por sua vez inserido sistematicamente no Título I sob a epígrafe "Dos Crimes contra as Pessoas". O texto actual do artº 140º e 142º do CP resulta da Lei nº 6/84, de 11 de Maio que, no essencial, manteve a solução de conferir dignidade e protecção penal à vida intra-uterina, tipificando o aborto como um ilícito penal, o que aliás deriva da tradição ético-jurídica inscrita na concepção humanista da sociedade portuguesa. Assim, o crime de aborto é punido, nos termos do artº 140º, com pena de prisão até três anos, aplicáveis quer à "mulher grávida que der o seu consentimento ao aborto praticado por terceiro", ou que, por qualquer meio "se fizer abortar", quer a "quem, por qualquer meio e com o consentimento da mulher grávida, a fizer abortar".Todavia, resultaram da alteração decorrente da Lei nº 6/84, três causas de exclusão da ilicitude do aborto consensual da mulher grávida, a saber: o aborto terapêutico, eugénico e criminológico. Assim, no caso de aborto por indicação terapêutica, e nos termos da alínea a) e b ) do nº 1 artº 142º do actual CP, a interrupção voluntária da gravidez não é punível se constituir o "único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida" , ou se "se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez ". Em face do exposto, no aborto terapêutico existem duas modalidades, a primeira independente de prazo, e a segunda, com a limitação das 12 semanas. Quanto ao denominado aborto eugénico, é igualmente lícito, nos termos da alínea c) do nº 1 do artº 140º do CP, se "houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez". Finalmente, o aborto criminológico, nomeadamente tendo por causa "sérios indícios" de que a gravidez resultou de violação, não é punível se realizado até às 12 semanas de gravidez, conforme prevê a alínea d) do nº 1 do artº 142º do CP.
É hoje pacífico que estas normas representam uma solução de compromisso e de equilíbrio social adquirido na sociedade portuguesa. Não obstante, em 1984, e a propósito da discussão pública sobre o actual texto do artº 142º do CP, a acção cívica de diversas entidades e cidadãos, muitos deles consagrados técnicos da ciência jurídica e da ciência médica, motivou o Presidente da República a requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas referentes à exclusão da ilicitude do aborto, nos casos de indicação terapêutica, eugénica e criminológica, nos termos em que actualmente se encontram consagradas. Em consequência, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 25/84, não se pronunciou pela inconstitucionalidade das normas que despenalizam o aborto nos termos do actual artº 142º do CP. No entanto, importa afirmar que a decisão do Tribunal Constitucional não foi tomada por unanimidade, porquanto cinco dos treze Juizes deste órgão de soberania, incluindo o Juiz Presidente, manifestaram a sua oposição mediante declaração de voto de vencido. Importa reter que, não se tratava de insensibilidade aos fundamentos invocados para aquelas causas especiais de aborto, porquanto, no essencial, divergiam da resolução em abstracto de tais casos, ajuizando que só em concreto deveriam resolver-se estas situações limite , nomeadamente excluindo-se a ilicitude e a culpa em função de um estado de necessidade desculpante ao abrigo do artº 35º do CP.

II O objecto do referendo.

O que hoje se discute e é objecto do referendo consiste em determinar, por vontade popular, a licitude ou ilicitude do aborto, até às 10 semanas de gravidez, e por razões que poderemos denominar económico ou sociais. Trata-se do "aborto a pedido", conforme inequivocamente resulta da questão sujeita a referendo que é literalmente a seguinte: "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado ? ". Por outras palavras, é a favor da despenalização do crime de aborto, se realizado nas 10 primeiras semanas, e por causas ou necessidades económicas ou sociais , que radicam exclusivamente na vontade da mulher ?

III A Defesa da Vida.

Tenho por seguro que a solução da despenalização nestes termos não pode deixar de ser inconstitucional, sendo o voto no "Não" a única forma de se cumprir a Lei Fundamental. Acredito na existência de valores absolutos cuja supremacia transcende o legislador, obrigando-o a reconhecer nas leis essenciais do Estado determinados Direitos Fundamentais. Aliás, é relevante notar-se que a Constituição reconhece, no seu artº 24º , o direito à vida como um Direito Fundamental, cuja inserção sistemática no âmbito dos diversos Direitos Liberdades e Garantias figura em primeiro plano. É compreensível este reconhecimento do primado do direito à vida, porquanto, este direito importa para o Estado o dever de protecção da vida, nomeadamente através da tutela penal, incluindo todo o ciclo da existência humana desde a concepção até à morte. Acresce que, a protecção Constitucional do direito à vida humana apenas é defensável se o Estado garantir este direito na sua dimensão mais radical e primária, que não pode deixar de ser o direito de nascer, abstendo-se de quaisquer medidas que representem agressões a esse valor jurídico essencial. Inversamente,sem esta garantia, os restantes direitos fundamentais da existência humana seriam meras fórmulas legais vazias de conteúdo social e desprovidas de sentido ético e jurídico.
Logo, a eficácia desta garantia não pode deixar de ser mediatizada pelo direito penal, sendo este um instrumento social de tutela dos bens jurídicos essenciais à realização da comunidade e do cidadão. Ora, determinando o artº 24 da Constituição literalmente o seguinte: "1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte", consagrou-se o reconhecimento da inviolabilidade da vida humana, sem operar qualquer discriminação entre a vida-intra uterina e a vida-extra uterina, protegendo-as ao mesmo nível, por se considerar que da mesma vida se trata. É inequívoco que a Constituição não determinou qualquer protecção menor ou garantia diminuída da vida intra-uterina. E seria razoável que o determinasse ? Seria Justo pretender-se que a vida humana intra-uterina tivesse menor dignidade e protecção Estadual do que a vida humana extra-uterina ? Sem hesitar, julgo que a resposta não pode deixar de ser negativa, porquanto da mesma vida se trata.

Não obstante, insiste-se em debater a discriminação entre a vida "já nascida" e a "vida por nascer", essencialmente, esgrimindo-se argumentos que de modo recorrente se reconduzem ao debate clínico em torno do aspecto externo do feto. Parece-me equívoco centrar o debate nestes termos, porquanto, a importância atribuída a este parâmetro esconde o facto incontornável de que a diferença de cada ser humano não reside, exclusiva ou essencialmente, no seu aspecto externo, mas igualmente no seu código genético. Na verdade, o genotipo, biologicamente presente desde a concepção, é o inicio de um projecto existencial , único e irrepetível, que a natureza concede a cada homem. O Direito a esse destino pessoal, para quem se criou o Estado e a Sociedade, não pode por esta ser indefensávelmente eliminado ou interrompido. Nesta perspectiva, o voto no "Não", não se limita ao exercício de um direito, é ainda a única forma de cumprir e fazer cumprir a Constituição e participar na construção de um projecto social, não apenas utilitarista e consumista, mas que se pretende referido a valores essenciais e absolutos, sendo o direito à vida, com a dignidade que lhe está inerente, o fundamento desses valores.

João Nuno Almeida e Sousa
(*) Texto publicado no Correio dos Açores em 1998

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