domingo, abril 8

Em defesa de Frank Miller



Eu devia ter nove, dez, não mais de onze anos, costumávamos passar o verão no Pisão, uma casa dos meus pais, junto ao mar, na costa sul da ilha de São Miguel. A caminho fica Agua de Pau e um supermercado que então se chamava Cova Da Onça, esse era um dos sítios onde eu comprava, ou pedia que me comprassem, as minhas revistas Marvel, pequeninas revistas, em formato A5, lançadas pela editora brasileira Abril, e que eram a única maneira de um puto português em finais dos anos oitenta conseguir ler comix americanos num mundo inundado de BD franco-belga. Gostar de super-heróis era um crime na altura, mesmo no sub-mundo dos amantes de banda-desenhada e a Abril era o único meio de acesso a esse crime. Foi através dessas revistinhas, cuja maioria ainda guardo religiosamente, que eu conheci Frank Miller. A primeira vez que me chegou às mãos um desenho de Frank Miller foi numa SuperAventuras Marvel com o Demolidor, um fantástico nome dado pelos brasileiros à personagem DareDevil. O impacto do desenho e da narrativa de Frank Miller em mim foi inexplicável. A partir desse momento tornei-me num fã incondicional do trabalho de Frank Miller e nunca me senti traído. Ao longo dos anos tenho acompanhado atentamente o trabalho daquele que é, depois de Will Eisner, o mais importante e influente criador de comix em toda a história do género, pode haver melhores argumentistas, melhores desenhadores, melhores finalizadores e melhores coloristas, mas a influência de Frank Miller sobre todo o mundo dos comix é de tal ordem que poucos se lhe podem comparar.



Desde os primeiros trabalhos como penciller do Demolidor na Marvel até Sin City, Frank Miller fez um percurso pleno de triunfos, prémios, reconhecimento dos seus pares, guerras com a indústria, rebeliões e regressos triunfantes. Começando em Ronin, passando por Batman ? The Dark Night Returns, ou Martha Washington, até Sin City e 300 e Batman ? The Dark Night Strikes Again, o trabalho de Frank Miller foi sempre dos mais brilhantes e fascinantes no meio.



A actual discussão em torno da versão cinéfila de 300 é, para um amante de comix, ou para um amante de cinema, ou para um amante de Frank Miller um enorme disparate. Todas as acusações e insinuações em torno do filme, desde "racismo" a "proto-fascismo", de "homo-erótico" a "demagógico", de "eugénico" a "pró-ocidental", todos os despautérios têm sido utilizados, pelo mundo todo, para atacar este filme. E são todos uma enorme asneira.



Frank Miller é um artista genial e nem toda a arte tem que ser política. Mas se há autor que tem sabido ser político é Frank Miller. Ao longo do seu trabalho Frank Miller tem satirizado e criticado todo o tipo de autoritarismos e ditaduras, principalmente as que limitam as liberdades individuais e a liberdade de expressão. Frank Miller foi sempre um combatente dos conglomerados capitalistas que usurpam as liberdades e limitam a escolha individual. Toda a narrativa de Frank Miller é uma de resistência, de heróis minoritários e indefesos contra hipóteses inigualáveis. Querer transformar Frank Miller num esbirro do neo-conservadorismo é um insulto brutal, desculpável apenas pelo desconhecimento que têm muitos dos que sobre ele e sobre o filme tem escrito. A obra de Frank Miller vale e ficará na história por uma multiplicidade de aspectos, a sua capacidade narrativa, as suas qualidades como artista, a sua enorme habilidade como argumentista, mas, também, pela sua constante preocupação em fazer apresentar, em todas as suas obras, o individuo, cada um de nós, cada ser humano, como o elemento mais importante do universo e de como a vida, a vida de cada um, todos nós, é o valor mais importante do mundo. Todos os heróis de Frank Miller, mesmo os super-heróis, são humanos.

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