quarta-feira, dezembro 12

Açores profundos


Rosais, 2004, Pães de Véspera


Em Março de 1839 o jornal portuense Revista Literária, na sua coluna de Belas Artes, noticiava desta forma a descoberta da técnica que mais tarde viria a ficar conhecida pelo nome de fotografia: Desenho obtido pela luz, ou processo pelo qual os objectos se desenham por si mesmos sem a ajuda de um lápis. Por muito que a técnica inventada pelo senhor Daguerre tenha evoluído até aos sortilégios da presente era digital, a sua definição primordial de desenho obtido pela luz conserva ainda hoje toda a actualidade e aplica-se que nem uma luva, creio eu, a este livro de fotografias do Paulo Monteiro, designadamente à forma como ele soube retratar o pão, cuja rugosidade nos é transmitida com a subtileza de um desenho a carvão.

Ao iniciar assim a apresentação da obra do Paulo, destacando a qualidade estética das suas fotografias mais abstractas – os pães de véspera da ilha de S. Jorge, e os pães do Império da ilha do Corvo – estou a desviar-me daquilo que ele próprio considera ser o centro de gravidade deste livro – o seu carácter documental relativamente à antropologia religiosa do povo açoriano – e é nesta perspectiva que os Açores profundos devem ser apreciados. Aliás, por falar em chaves de leitura, julgo útil chamar a atenção para a página 115, onde são feitos os agradecimentos, e os do Paulo vão em primeiro lugar para a Cristina Rodero, pela inspiração. Ora, Cristina Garcia Rodero, é uma fotógrafa espanhola que alcançou notoriedade internacional em 1989 com a publicação da obra España Oculta, trabalho de fotografia assumido como recolha documental e antropológica das tradições festivas e religiosas das gentes dos pueblos espanhóis nas décadas de 1970 e 1980, e que claramente serviu de modelo ao Paulo Monteiro para a realização deste seu projecto sobre os Açores profundos que, é bom recordá-lo, levou 12 anos a concretizar e abrange todas as ilhas do arquipélago, cobrindo as celebrações do Espírito Santo desde o Corvo até Santa Maria, isto para não falar de muitos outros festejos que ao longo do calendário litúrgico marcam o tempo próprio das diferentes freguesias açorianas.

Os apreciadores de fast food cultural, com o seu olhar apressado sobre as coisas, dirão porventura desta obra, encolhendo os ombros – "mais um livro de fotografia sobre procissões e, ainda por cima, a preto e branco". Bem, de facto, estas imagens estão nos antípodas dos Açores coloridos e sexys das campanhas publicitárias, onde as técnicas fotográficas estão ao serviço da ilusão da realidade, enquanto que aqui se procura retratar – não direi a realidade, mas – aquilo que ainda existe de verdade nos Açores profundos. Daí o carácter – e a urgência – documental da presente obra, pois estes Açores a preto e branco que durante séculos pairaram no tempo como uma bola de sabão, estão prestes a rebentar e a desaparecer. Paradoxalmente, o projecto do Paulo que, tal como o de Cristina Rodero, demorou mais de uma década a concretizar, foi feito a uma velocidade de contra-relógio, no sentido em que representou uma corrida contra a roda do tempo, um tempo que nos escorre das mãos como água entre os dedos.

Os Açores do Paulo são, por assim dizer, uma paisagem protegida em papel e película fotográfica. Protegida da crescente e indiscriminada tendência de todos os concelhos açorianos para municipalizar a religiosidade popular, transformando-a num festival; e protegida também da tentação – mesmo que bem intencionada – do poder político governamental transformar o Espírito Santo numa espécie de logo identificador da marca Açores. O património cultural açoriano é um dos mais ricos e íntegros do país, razão pela qual a revista National Geographic, em inquérito realizado no mês passado aos destinos insulares, colocou este arquipélago no topo de um invejável ranking mundial, sem que para isso fosse necessário fazer qualquer campanha promocional nas principais Bolsas e Feiras de Turismo europeias. Parte significativa do activo patrimonial – para usar uma expressão muito do agrado dos economistas – das ilhas dos Açores está directa ou indirectamente ligado à religiosidade popular e, nesse sentido, os documentos fotográficos do Paulo Monteiro, literariamente emoldurados pelo talento e competência da Madalena San Bento e do Álamo de Oliveira, representam um contributo sério e rigoroso para o enriquecimento e preservação do património açoriano.

Mas isto é dizer pouco de um livro de fotografia que se situa num patamar muito diferente de todos os outros – e são muitos – que até agora foram publicados sobre os Açores. Prefiro tomar de empréstimo as palavras de Pedro Miguel Frade: Tempos houve em que a fotografia constituiu, à sua maneira e enquanto não se sabia (…) que o sagrado já estava a sangrar, uma guarda avançada da laicização do mundo …hoje, poderia bem ser que ela estivesse para se tornar num dos únicos modos da sua sagração. Creio que o Paulo Monteiro conseguiu interpretar da melhor forma com os seus Açores profundos este desejo do Pedro Frade que, se estivesse vivo, decerto saudaria entusiasmado a publicação de um livro – e com isto termino – que foi para mim um privilégio apresentar.

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