terça-feira, janeiro 22

um qualquer desejo de mudança

Ontem à noite, enquanto bebericava uma Sagres pelo gargalo, cofiava o pelo da gata deitada sobre a minha barriga, e via o debate da CNN, com Hillary, Barack e John, dei por mim a pensar no Manuel Alegre. Um dos fenómenos mais interessantes que saíram das últimas eleições presidenciais portuguesas foi a candidatura de Manuel Alegre e as suas consequências no panorama político nacional. Não quero escamotear o passado do poeta, mas para o que aqui me interessa o "fenómeno" Alegre, tal como é hoje, começou nas directas do PS de 2004. Nesse tempo Portugal vivia os anos loucos do santanismo, o PS estava órfão, após a demissão de Ferro Rodrigues, e salivava com a perspectiva de um ataque ganhador ao poder e via no perfil aprumado de José Sócrates o passaporte ideal para o El Dorado da governação. Eis que se ergue Manuel Alegre, agitando a espada do verdadeiro socialismo, contra a bandeira liberal de Sócrates. Alegre foi então o arauto de um socialismo puro, filho de 74, humanista, romântico, universalista, utópico. Eu votei nele nessas directas. Fast Forward para 2006, ano das presidenciais. Na direita o candidato inevitável: Aníbal Cavaco Silva. No governo de José Sócrates o candidato inevitável: Aníbal Cavaco Silva. Na esquerda: o caos, o pânico, o martírio e Mário Soares e Manuel Alegre. Em 2006 Alegre surge como o candidato da rebeldia, o candidato anti sistema, o candidato da mudança. O estatuto criado por Alegre em 2006 era generalista e talvez até excessivamente plural. Alegre congregou à sua volta uma panóplia colorida de sensibilidades que iam desde um certo conservadorismo elitista que se revia na faceta marialva, de caçador de fim-de-semana, de Alegre, até uma certa esquerda radical saudosista dos meses quentes de 75, passando por intelectuais diversos, mulheres variadas e todo o tipo de sonhadores. Havia um Alegre para cada um. Por isso mesmo quando se tentava perceber o que de concreto representava Alegre as respostas eram tantas como o número de apoiantes. O elemento agregador era a vontade de mudança, fosse lá o que isso fosse. Hoje, Alegre está perdido no seu próprio caleidoscópio político, restando-lhe apenas um certo sebastianismo concretizado na esperança vaga de que num dia de nevoeiro o mundo mude para melhor. Não pretendo fazer uma comparação taxativa entre Manuel Alegre e Barack Obama, mas alguns aspectos são particularmente reveladores de uma tendência que é hoje recorrente no mundo ocidental. A esperança que uma determinada geração, independentemente da sua posição no espectro político, coloca na possibilidade de um líder salvador que como que por magia mude o mundo. E mais do que em políticas concretas tudo se resume no poder hipnotizante da palavra mudança. Um dos momentos mais engraçados do debate de ontem aconteceu quando Edwards e Clinton fizeram coro na crítica aos sucessivos votos em branco de Obama. O apontar de dedo à incapacidade recorrente de Obama em tomar partido quer na escolha de políticas concretas, quer no reconhecimento claro de uma área ideológica (as referências a Reagan). Um dos problemas dos políticos que em eleições pretendem apresentar-se como não políticos, como exteriores à política, virgens, é precisamente na hora do confronto com as vis minudências da política real. A política de facto, de leis e decretos e decisões. Não sei se repararam mas nas últimas semanas, voando baixinho, abaixo do radar mediático, mas sem o estrondo de um F-16 no limiar da barreira do som, os dois maiores partidos do espectro político português, Socialistas e Sociais-democratas, cozinharam e apadrinharam uma nova Lei Eleitoral Autárquica. Uma Lei altamente penalizadora dos pequenos partidos e, mais grave, das listas de cidadãos que apenas nas eleições autárquicas tem uma real e viável plataforma de intervenção. Não sei também se repararam que Manuel Alegre absteve-se na votação dessa lei. O mesmo Manuel Alegre que é o pai espiritual dessa coisa chamada Movimento Intervenção e Cidadania. Nas presidenciais portuguesas o povo escolheu o tecnocrata em vez do poeta. Esperemos para ver se nos EUA os americanos escolherão, ou não, o carismático Obama ou a pragmática Hillary. Pelo sim pelo não, alguém que arranje a Barack uma tradução da Trova do Vento que Passa, pode ser que dê jeito. "I ask the passing wind / news from my country / but the wind silences the disgrace / the wind says nothing to me..."

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