quinta-feira, fevereiro 5

A vida ao contrário

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"Tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado.". Este desafio perante a vida foi magistralmente ficcionado por Milan Kundera no incontornável "A insustentável leveza do ser". Hoje esta obra já perdeu validade dada a alteração do contexto político em que foi produzida. O mesmo se dirá da sua adaptação ao cinema. Mas, há Cinema que passa ao largo do entretenimento e do momento histórico que o motiva. "O Estranho caso de Benjamim Button" é um exemplo desse Cinema feito com a mestria de ourives e capaz de compor uma história épica e intemporal. É certo que uma das personagens do filme afirma recorrentemente que nada dura para sempre, mas, no final do filme, fica-nos a certeza de que o amor que não se esquece é capaz de ser a excepção à regra.

A novidade deste filme, - que a crítica tem negligenciado mas que tem conquistado o público - , está em contar a história ao contrário. Assim, o relógio biológico da personagem encarnada por Brad Pitt funciona em sentido contrário ao andamento normal do tempo. Button é pois uma aberração da natureza que nasce velho para morrer novo! Um caso de verdadeira ficção que é uma provocação para uma reflexão pessoal da vida e daqueles que nos rodeiam. No filme, como na vida, por vezes andamos em sentido contrário sem nos apercebermos de que estamos em rota de colisão. No filme, como na vida, não sabemos, porque não ensaiamos a entrada em cena, que "as nossas vidas são definidas pelas oportunidades, mesmo pelas que perdemos". A única alternativa de corrigirmos efectivamente as oportunidades perdidas e os erros que transportamos seria vivermos uma segunda vida ao contrário. Woody Allen imaginou a dele assim : "Na minha próxima vida quero vivê-la de trás para a frente. Começar morto para despachar logo esse assunto. Depois acordar num lar de idosos e sentir-me melhor a cada dia que passa. Ser expulso porque estou demasiado saudável, ir receber a pensão e começar a trabalhar, receber logo um relógio de ouro no primeiro dia. Trabalhar 40 anos até ser novo o suficiente para gozar a reforma. Divertir-me, embebedar-me e ser de uma forma geral promíscuo, e depois estar pronto para o liceu. Em seguida a primária, fica-se criança e brinca-se. Não temos responsabilidades e ficamos um bébé até nascermos. Por fim, passamos 9 meses a flutuar num spa de luxo com aquecimento central, serviço de quartos à descrição e um quarto maior de dia para dia e depois Voila ! Acaba com um orgasmo !". David Fincher, que realizou "O estranho caso de Benjamin Button", tem uma outra visão menos irónica mas substancialmente épica. É efectivamente de um filme épico que se trata, sem a mole habitual de figurantes que enchem um épico de Hollywood, que retrata a heróica existência humana. Como isso não basta para fazer um épico "oscarizável" engendra-se, com a perícia de um relojoeiro, uma existência que se vive do fim para o princípio. A realização está a cargo de um dos melhores cineastas da actualidade. O argumento saiu da adaptação criativa de um conto de F. Scott Fitzgerald's pela mão de Robin Swicord, o mesmo que também escreveu o argumento de outro épico existencial que é "Forrest Gump". Tendo como núcleo central a cidade de Nova Orleães este "Estranho caso de Benjamin Button" é indispensável para quem vê no Cinema mais do que 90 minutos de entretenimento. Se é para entreter mais vale ir à "bola" ; mas se puderem não deixem passar a oportunidade de ir ao Cinema para se reencontrarem com a verdadeira "sétima arte" que se respira neste "Estranho caso de Benjamin Button".
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João Nuno Almeida e Sousa nas crónicasdigitais do jornaldiario.com

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