quinta-feira, janeiro 14

A tirania dos afectos

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Nas malhas que a história tece trocam-se bandeiras de acordo com a moda da estação. Paradoxalmente anos de pública manifestação de orgulho gay e lésbico, pela afirmação da diferença e respeito por esse território, foram, por decreto, arquivados. Em sua substituição ergue-se agora a bandeira de um igualitarismo postiço com a consagração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Nesta sanha de lutar contra o país real a Assembleia da República transformou-se num circo mediático acentuando a "crise conjugal" que mantém com a nação que, infelizmente, há-de terminar em divórcio. Curiosamente, numa época de crise generalizada, incluindo a do casamento como instituição, a Assembleia da República ficciona o assento de casamento como passaporte para a felicidade individual dos nubentes. Mas, também como passo para a nossa felicidade colectiva como se a bênção republicana do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos tivesse retirado das trevas e de anos de atraso civilizacional. O clima de festa foi tal que a jubilação na Assembleia da República evocou nos mais excitados a revolução de Abril que, presuntivamente, também neste capítulo estava por cumprir. O certo é que depois da boda e do copo de água acaba a festa, e a realidade é que também o casamento gay e lésbico entrou em crise nos Países onde foi legalizado. Espanha é disso um bom exemplo estatístico e uma lição de que não é só pela "letra de lei" que se sentencia a tolerância ou se põe termo à discriminação.
Nesta, como noutras realidades da vida, o bom senso deveria prevalecer para a protecção dos direitos que efectivamente carecem da tutela jurídica. Nesse caminho, por exemplo, a proposta do PSD da "união civil registada" permitia uma legítima extensão de direitos tão simples como a possibilidade de declaração conjunta de rendimentos, até aos mais comezinhos direitos no âmbito das relações laborais no que respeita à gestão comum de férias, faltas e licenças. Não excluía direitos de maior densidade patrimonial e obrigacional, nomeadamente, no domínio das sucessões, na protecção social em caso de morte e na garantia da tutela da "casa de morada de família". O Partido Socialista, de costas para o país real, e a reboque do Bloco de Esquerda, preferiu acrescentar mais uma rosca na máquina da sua engenharia social impondo a Portugal, até nos costumes, um Estado "padronizador". Congregou a esquerda "do contra", que faz sindicato quando convém à sua cartilha, e diz que é pelas liberdades e pelos direitos "politicamente correctos", mas decide unilateralmente contra as mesmas liberdades e direitos dos "outros", por exemplo, sentenciando o arquivo de cerca de 100 mil assinaturas, recolhidas por cidadãos no movimento cívico Plataforma Cidadania e Casamento, que reclamavam um amplo debate e até um referendo nacional sobre esta matéria de interesse social. Com efeito, o casamento civil não é apenas um contrato, mas uma instituição secular que não devia ser violentada por mero decreto. Mas, como já se percebeu, por detrás, desta agenda não está apenas a luta por um "direito cívico" mas também uma "causa" contra o modelo de sociedade vigente. Mas, se é esta a via do igualitarismo não tarda, e nada obstará, ao reconhecimento legal da "poligamia", à regulação da "poliandria", praticada ainda em certas latitudes, enquanto união conjugal em que uma mulher tem, legalmente, dois ou mais maridos, ou se quisermos uma aproximação mais moderna o Estado poderá padronizar a "poliamoria" enquanto rede social de uniões plurais sem constrangimentos de género ou de vínculos formais. Num país aberto ao mundo e ao cosmopolitismo também estas "questões fracturantes" merecem tutela jurídica. Reconhecer, por exemplo, as uniões polígamas existentes em determinadas franjas das nossas comunidades afro-emigrantes não seria um acto de justiça e de progresso civilizacional? Claro que sim, mas porventura não estaria em sintonia com os "nossos costumes" e, apesar destes serem cada vez menos uma "fonte de Direito", não será por "decreto" que a sociedade muda ou interioriza como igual outras realidades que são diferentes. Nesta procissão de equívocos já se percebeu também que o passo seguinte, por "escrúpulo democrático", será a invocação do direito à adopção pela comunidade gay e lésbica. Mais um retumbante equívoco na medida simples de que ninguém tem o direito a adoptar. A adopção é um direito exclusivo das crianças que deve ser ponderado no exclusivo e concreto interesse das mesmas, independentemente da orientação sexual e capacidade parental de quem quer recorrer à adopção. E que dizer da exigência destes novos casais de terem direito à procriação medicamente assistida? Terá este Estado omnipresente também uma solução para legislar sobre a actividade filantrópica das "barrigas de aluguer"! Como vivemos numa tirania de afectos tudo é possível em nome do amor.

João Nuno Almeida e Sousa nas crónicasdigitais do jornaldiario.com

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