quarta-feira, outubro 26

...Ironic

(…) "Call Me" era o wishful thinking dele. Substituíra o tv dinner descartável por uma sopa de cenoura e lentilhas weight watchers da Heinz. Preso ao ecrã do computador sentia quão descartável era a sua vida. Era irónico ! Na bolina da sua juventude andara "a navegar na maionese", para usar uma feliz expressão Brasileira importada dum amigo que hedonisticamente sabia viver a dolce vita em temporadas alegres no Rio de Janeiro, e agora, no galgar das ondas da meia-idade, sentia o lastro, o chumbo, o peso da âncora dos dias que passaram, sem que fosse capaz de "Navegar" sob a flâmula lusitana. Por exemplo, na rota do estandarte de um Fernando Pessoa. Mas, ao invés, do desígnio de Pessoa claudicara no desalento da poesia de Al Berto.


Fernando Pessoa, que não sabia nada de navegação, nem consta que tivesse sequer carta patrão de costa, traçara-lhe há muito tempo as coordenadas para a viagem de circum-navegação a si mesmo : "Descobre-te todos os dias, deixa-te levar pelas tuas vontades, Procura! Procura sempre o fim de uma história, seja ela qual for." Entre a poesia galvanizadora e a realidade comezinha medeia um mar de escolhos e um cabo das tormentas que nem todos os navegantes têm a arte e o engenho para superar. Teclou no youtube "Sonata de Kreutzer" de Beethoven e fechou a janela dos Blondie no soundcloud. Chovia espessamente de nuvens densas como metal líquido e ele foi recuperar as letras da Sonata, mas pela pena de Tolstói, num livro que deveria ser de leitura obrigatória e tutorial, na educação de qualquer jovem como prevenção geral no desenlace de tanto nó-górdio que seria evitável. Releu o clássico no sublinhado que tracejara : "(…) Esta sonata é uma coisa terrível. E a música em geral. O que é isso ? Não compreendo. O que é a música? O que ela nos faz ? E por que é que faz o que faz ? Dizem que a música provoca um efeito sublime na alma…Mentira, absurdo! Provoca um efeito, um efeito terrível (estou a falar de mim), mas não sublime. Não age na alma de modo sublime nem humilhante, mas de modo excitante. A música faz-me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu ; a música parece que me faz compreender o que não compreendo, parece que, com a música, posso fazer o que na verdade não posso." A música que o excitava era outra mas desistiu de ser ele a fazer a chamada telefónica a meio da noite. Seria inútil e ridículo ligar-lhe a desoras convocando fantasmas de um passado que estava já soterrado por camadas sucessivas de partículas do mesmo pó do qual viemos e no qual nos tornaremos. Existiriam sempre silêncios elementares que apostava poderia partilhar com ela … mesmo sem lhe falar a rogar confidência. Coçou as costas e roçou a sua tatuagem e logo se recordou que fora através do maldito Houellebecq que chegara ao sadismo existencial de Tolstói. A propósito da Sonata recordara-se que sublinhara, nas páginas das "Partículas Elementares" o axioma; "olhando para o passado, temos sempre a impressão – provavelmente falaciosa – de que havia nele uma parte de determinismo". Resolveu desligar-se das letras e de sobrecarregar os sentidos com tantas palavras desnecessárias. Perseguia-o a memória de saber que tudo o que precisava era o mundo cuja memória tinha nos seus braços. Era tarde. Resolveu desligar o PC enrolou uma daquelas páginas lascivas de Houellebecq e meteu um filtro da Sonata de Kreutzer e ali ficou, na penumbra, fumando aquele condensado de literatura. Ficou ali imóvel com a certeza de que ela amanhã telefonaria. Ali permaneceu acordado, apreciando o silêncio, apostando que ela lhe ligaria nos dias seguintes




...Continua ?

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